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“Pouco valor terá a catequese, mesmo substanciosa e segura, se não for transmitida com eficiência de expressão e apoio daqueles subsídios didáticos que hoje se apresentam sempre mais ricos e sugestivos”.
(João Paulo II)

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Iniciação Cristã

                                  A DIDAQUÉ: UM CATECISMO DO SÉCULO I

Às vezes a gente se surpreende perante afirmações, como que a Didaqué seria uma espécie de documento “papista”, quando na realidade é um documento precioso que, sem ser canônico e considerado apócrifo ou, como se diz mais elegantemente na atualidade, extra-canônico, nos aporta, seguindo os eruditos, preciosas informações de que como se organizou a fé cristã em seus começos, pouco após a morte-ressurreição de Jesus.

Eu mesmo, quando leio os livros extra-canônicos, me dá a impressão de que me caem das mãos. Porém, quando a gente da uma olhada em autores como Willy Rodorf e André Tuilier, Gerd Theissen, Crossan, Urbano Zilles, etc. A gente apreende a ler nas entre-linhas e a dar valor a textos que, mesmo não tendo sido aceitos pelas igrejas desde o início, nos falam daqueles primeiros tempos do cristianismo, daquelas igrejas primitivas, daqueles itinerantes, graças aos quais, a fé em Jesus Cristo foi se espalhando e estabelecendo em comunidades e igrejas. Por isso, vamos lá com a Didaqué.

1º. Sobre o documento.
a) A palavra grega “didaqué” quer dizer instrução, ensinamento ou doutrina dos Apóstolos, mesmo que ninguém acredite ser dos 12 apóstolos e sim, a experiência de umas das primitivas comunidades cristãs.

b) Este documento foi encontrado em 1883 por Philotheos Byrennios, no momento, metropolita de Sérrai na Macedônia, que publicou um manuscrito grego, datado de 1056. Desde 1887 permanece com o patriarcado de Jerusalém, onde é conhecido como o Códice Hierossimilitano 54. Outras versões parciais foram encontradas: uma geórgica, um fragmento em copto que se encontra no Museu Britânico, dois fragmentos em grego e um fragmento no papiro de Oxyrhynchos, datado entre os séculos IV e V. Em 1900 descobriu-se também uma cópia latina que se encontra no Museu de Munique, datada do século XI.

c) A Didaqué foi compilada, segundo uns autores, entre os anos 50-70, ou segundo outros entre os anos 90-100. Se foi redigida, mesmo que tenha sido apenas em suas primeiras partes, nos anos 50, estamos em plena época de São Paulo. Todos os autores estão de acordo em que a comunidade na qual foi escrita estaria situada na Palestina ou na Síria e, talvez na própria Antioquia.

d) Esta comunidade estava formada por judeu-cristãos que, provavelmente, começou acolher também alguns pagãos.

2º. Sobre o conteúdo.

a) Podemos dizer que, a Didaqué, é uma instrução, não teórica nem filosófica, senão para a prática da vida da comunidade e para os membros que vão chegando e sendo assumidos por ela. Seria, por assim dizer, o mais antigo catecismo formulado por uma das Igrejas primitivas. Os autores discordam sobre se, esta comunidade conheceria algum dos evangelhos que temos hoje ou não. Ou se teve aceso ao hipotético Evangelho Q (do alemão Quelle = Fonte) ou ainda, se conheceriam a hipotética Tradição dos Ditos Comuns, anterior ao Evangelho Q.

b) Trata-se de uma comunidade de origem judaica, pois acolhe o conhecimento antigo judaico. De todos modos, Jesus foi um judeu piedoso e poderia conhecer também tradições antigas. A Didaqué traz a pré-cristã “regra de ouro” de “não fazer aos outros aquilo que não queres que te façam” ou, em positivo, de “fazer aos outros aquilo que queres que eles te façam”, presente também no chamado Evangelho Q, deduzido de trechos comuns de Lucas e Mateus.

c) Seu conteúdo pode ser dividido em quatro partes:

I (I,1 – VI,2): Este trecho contém uma instrução para os novos membros que se resume no chamado, “Dois caminhos” que se encontra também em textos pré-cristãos judaicos. Caminho da vida ou caminho da morte. Pode-se resumir no caminho do bem e no caminho do mal. Daqui se acusa o documento como judaizante apesar de que também foi conhecido pelos padres apostólicos e que apareceu em outros textos cristãos dos primeiros séculos. Dentro das denúncias do mal aparecem tanto o aborto quanto a pedofilia. Parecem duas questões modernas? Pois não são! Trata-se de práticas bem antigas e radicalmente rejeitadas pela comunidade primitiva.

II (VI,3-X,7): Neste espaço encontramos, especialmente, as normas litúrgicas que regiam as orações comunitárias. Entre elas a celebração do batismo, praticamente, como o conhecemos hoje e uma celebração rudimentar eucarística e/ou ágape fraterno, testemunha da fé mais primitiva. É daqui donde surgem as acusações de “papismo” ao documento, pois naquela comunidade original se permite batizar em qualquer água: corrente, fria, quente, por imersão ou derramando três vezes água sobre a cabeça do batizando, sempre “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”. Também se fala sobre o dever de rezar o Pai Nosso, três vezes por dia e sobre a indispensável partilha ou ajuda constate para com os pobres.

III (XI,1-XV,4): Nestes capítulos descobrimos o seguinte: por um lado temos a comunidade estabelecida; por outro, a visita dos chamados “apóstolos e profetas” que nos dá conta de como eram aquelas primeiras igrejas. A comunidade estável era visitada pelos itinerantes, chamados dignamente como apóstolos ou profetas, que traziam a palavra inspirada como palavra do Senhor. (“Todo apóstolo seja recebido como o Senhor”, diz a Didaqué). Os autores querem descobrir uma tensão dialética entre o radicalismo dos itinerantes e a assunção de seus princípios pela comunidade estável. Por outro lado, do mesmo jeito que a comunidade primitiva acolhia com toda generosidade àqueles pregadores itinerantes, também compôs normas para se defender dos “falsos” profetas e apóstolos. Por exemplo, diz a Didaque, “todo profeta que ensina a verdade sem praticá-la é um falso profeta”. Parece ser que este princípio serve até hoje. “Aquele que disser, dá-me dinheiro ou qualquer outra coisa, não o escuteis...”. Evidentemente é um aproveitador. “Se ... é um comerciante de Cristo, acautelai-vos contra tal gente”. Quer dizer, que já no começo havia “comerciantes de Cristo”, (em grego “Christemporos, palavra em cujas raízes se encontram, “Cristo” e “empório”). Parece ser que nossos problemas modernos são bem antigos!

IV (XVI,1-8). Trata-se, como não poderia deixar de ser no cristianismo primitivo, de uns apelos apocalípticos finais.

Observações:
É claro que a Didaqué não é um documento canônico. O chamado cânon de Muratori, que é uma pequena lista de livros reconhecidos como revelados ou inspirados pela Igreja de Roma, composto na segunda metade do século II, não fala neste primeiro catecismo. Reconhece como inspirados os quatro evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, o livro dos Atos dos Apóstolos, algumas das cartas de Paulo e João, etc. A Igreja de Roma não reconheceu como revelado nem mesmo o livro conhecido como o “Pastor” de Hermas, escrito pelo próprio Hermas, irmão de Pio I, bispo da cidade de Roma mais ou menos entre os anos 140 e 154, mesmo que o recomende como uma leitura piedosa.
Assim, pois, qualificar a Didaqué de “papista”, parece-me um anacronismo. A palavra “Papa”, não quer dizer nada além de “pai” e que o povo cristão deu, carinhosamente, ao Bispo de Roma. No momento em que a Didaqué foi redigida, a autoridade estava dispersa entre as Igrejas reconhecidamente apostólicas, isto é fundadas diretamente pelos Doze Apóstolos. Uma delas era a de Antioquia. Porque está autoridade? É simples: na época não havia evangelhos escritos. Qualquer lista de palavras ou fatos atribuídos a Jesus teria sempre que se contrastar com a palavra dos próprios Apóstolos ou teria que ser derivada deles. Apenas a partir da década dos sessenta até o final do século I é que se compõem os Evangelhos como os conhecemos hoje.


Isto não exclui a existência de outros evangelhos que, a partir do século II foram sendo redigidos em outras várias comunidades e colocados sob a autoridade de uns e de outros contemporâneos de Jesus e que conhecemos como apócrifos ou, melhor, extra-canônicos.

E, como disse anteriormente, não seria uma surpresa para os eruditos que aparecessem, numa ou noutra escavação arqueológica, coleções de ditos ou de feitos de Jesus, aos que eles já deram nome, por exemplo, o Evangelho Q ou a anterior Tradição dos Ditos Comuns.

Conclusão:

Os escritos extra-canônicos podem nos ajudar, se não a conhecer Jesus, ele mesmo, sim nos conduzem nos problemas, nos questionamentos, nas tensões, nos desentendimentos e no conhecimento do que foi que houve nos primeiros séculos do cristianismo.


Hoje, pensamos numa espécie de tronco comum, chamado cristianismo, do qual derivariam as Igrejas ou várias denominações eclesiais. Mas não foi assim. Podemos perceber que, na origem existiam as Igrejas ou comunidades de fé, fundamentadas ou alimentadas pela palavra “inspirada” de “apóstolos ou profetas” itinerantes. Especialmente, as Igrejas consideradas apostólicas ou, diretamente fundadas pelos Apóstolos. O nome de “cristão” e cristianismo veio depois e como um modo de pôr em ridículo os seguidores de um tal “Crestos” ou “Cristo”. Parece ser que este nome se deu, em primeiro lugar, para os seguidores de Jesus na Igreja de Antioquia.


É claro que, tudo isso não atinge a fé em Jesus Cristo, nosso Senhor, que por nós morreu e ressuscitou, mas nos ajuda a perceber uma longa história na institucionalização e vivência da fé nele. Quem sabe? Estes escritos não nos ajudam a todos a concretizar uma união entre as igrejas, de uma maneira nova e impensada ainda. Talvez, uma união, mais na prática do que na teoria, mais na ortopraxia do que na ortodoxia... Ao tempo!




| Pe. Agustin Juan Calatayud y Salom sj , Padre, Pároco de Nossa Senhora da Esperança.

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